Artivista usa lama tóxica do rio Paraopeba em obras de arte

Compartilhe:

Da calha do rio ao maior festival de arte da América Latina. Foi esse o caminho que a lama tóxica da Vale percorreu pelas mãos do Mundano. Um novo capítulo desse crime foi desenhado pelo artista que transforma a realidade em arte de protesto para nos lembrarmos, ou melhor, para não nos esquecermos do dia em que a mineração no Brasil mais uma vez vitimou um rio e centenas de vidas ao seu redor.

Exatamente um mês após a queda da barragem da Mina Córrego do Feijão, da Vale, tragédia que aconteceu em 25 de janeiro em Brumadinho (MG), o grafiteiro e artivista paulistano Mundano, reconhecido internacionalmente pelo estilo “papo reto” de se expressar, foi pisar com os próprios pés no cenário de mais um grande desastre ambiental do Brasil, que até então já fez mais 300 vítimas humanas e contaminou o Rio Paraopeba, um dos afluentes do Rio São Francisco.

Clique nas imagens abaixo para visualiza-las em tamanho maior.

A passagem do artivista por Brumadinho ficou registrada nas intervenções locais como no cacto instalado na lama de rejeitos no Rio Paraopeba, no grafite nos muros da cidade e nas ilustrações cujo cenário trazem imagens reais da tragédia.

“Eu acredito que a arte tem um papel reflexivo. As pessoas confundem arte com beleza, mas para mim ela é uma ferramenta de amplificar vozes e eu procuro dessa forma transcender o informativo de mídia de massa, tradicionais e de redes sociais. Fui para Brumadinho para ver de perto como ativista eu poderia ecoar essa voz, amplificar a voz dos atingidos. Eu fiquei lá uma semana fazendo algumas ações e repercurtindo pelas redes para fazer chegar uma informação mais verídica”, conta Mundano.

Símbolo da resistência, Mundano instala um cacto no leito do Rio Paraopeba. Criada a partir de cano de água reutilizado, a obra também esteve na seca nos reservatórios de São Paulo e na Califórnia em 2015. Crédito: Alexandre Silva

Para o artivista, que acabou tendo contato com a população afetada na cidade, as vítimas da tragédia vão muito além das que morreram soterradas pela lama de rejeitos. Além da contaminação da água, a população que vive em Brumadinho (MG) também sofre o impacto emocional e econômico da queda da barragem. “Fui visitar uma cooperativa de catadores que ficaram um mês sem trabalhar porque perderam parentes. Tiveram um prejuízo enorme e nunca vão ser ressarcidos”, relata o artista após visita à Associação dos Catadores de Materiais Recicláveis de Brumadinho (ASCAVAP).

Clique nas imagens abaixo para visualiza-las em tamanho maior.

A relação com os catadores de lixo é um capítulo a parte do trabalho de luta pelo meio ambiente que Mundano carrega na sua história. Foi com o Pimp My Carroça, movimento que visa melhores condições de trabalho aos catadores de lixo, retirando-os da invisibilidade por meio de ações como exposições, mutirões e passeatas, que o artista teve a ideia de mostrar a importância que esses trabalhadores marginalizados têm na preservação ambiental e dos recursos hídricos. “O trabalho mais significativo que eu tenho é com os catadores de materiais recicláveis, mas para mim ele tá super ligado a questão da água, porque os catadores, com o trabalho que eles fazem, a cada quilo que eles estão coletando para reciclar, eles estão economizando água, tendo vista que o processo de reciclagem economiza água em relação a extração da matéria prima”, explica Mundano.

Do caos à galeria de arte

Para que a tragédia não caisse no esquecimento, Mundano resolvou transpor a lama tóxica do leito do rio Paraopeba para as telas. Recolheu o material e levou para o seu ateliê em São Paulo. “Fiquei impressionado com o peso dele. Coloquei um imã e vi que tinha uma atração, porque tinha muito minério de ferro. Fiz alguns testes e até um tratamento de uma amostra e consegui tirar uma quantidade de minério de ferro absurda”, explica. As experiências com a lama podem ser assistidas nos vídeos publicados no instagram do artista.

Nas releituras de Guernica (Pablo Picasso), Abapuru (Tarsila do Amaral) e Mestiço (Cândido Portinari), Mundano tratou a lama tóxica, obteve tons diferentes e pintou as obras com elementos que remetem ao crime de Brumadinho (MG).

Na releitura do quadro Guernica, de Pablo Picasso, as bombas que mataram inocentes em Guernica dão lugar a lama tóxica da Vale que deixou um rastro de morte em Minas Gerais. Crédito: Stefania Sangi.
Na releitura do quadro Abapuru (palavra que significa “homem que come gente”), de Tarsila do Amaral, Mundano o chamou de “Abapuruopeba”, fazendo um paralelo da lama que comeu gente, os inocentes, a natureza. Crédito: Stefania Sangi.
Na releitura do quadro “O Mestiço”, de Cândido Portinari, o artista chamou de “O Mestiço do Vale do Paraopeba”, que representa um atingido que está no local do resgate tentando amplificar o crime de Brumadinho (MG) para que não caia no esquecimento. Crédito: Stefania Sangi.

As três obras inspiradas na tragédia de Brumadinho foram expostas no início da abril no maior festival de arte da America Latina, o SP-Arte, realizado no Pavilhão da Bienal em São Paulo.

Mundano, que acredita que a arte é uma forma de comunicar com as pessoas de um jeito mais fácil e eficaz, começou seu trabalho de ativista contra as consequências da mineração em 2015, após o rompimento da barragem do Fundão da Samarco, em Mariana (MG), quando se inspirou na obra Monalisa e fez a releitura que chamou de “Mundalisa”.

Primeira experiência de pintura com lama tóxica foi na criação da Mundalisa, releitura do famoso quadro Monalisa, de Leonardo Da Vinci, utilizando o rejeito da tragédia de Marina. Crédito: Stefânia Sangi

“Recebi a lama de Mariana por uma amiga e fiz uma releitura da Monalisa (Leonardo Da Vinci) e outras obras para que esse crime não caia no esquecimento, até porque continua na impunidade. Também levei o trabalho para a rua. Fiz vários grafite falando “a Samarco azedou o rio Doce” e que estão até hoje nos muros das cidades.

Clique nas imagens abaixo para visualiza-las em tamanho maior.

Arte pela água e uma crise hídrica ignorada.

A luta do Mundano pelo meio ambiente e, principalmente, pela água promete não acabar por ai. O ativista pretende se aprofundar no ativismo relacionado a crise hídrica, conhecer outros territórios que estão na extensão do rio São Francisco e entender a realidade de uma população nordestina que convive com a falta de água o tempo todo. “Parece que o Brasil só está em crise hídrica quando São Paulo ou o Rio de Janeiro ficam sem água, quando na verdade é uma realidade nacional em diversos momentos do ano. Tem um população gigantesca que tá sem acesso a água e isso é muito contraditório se pensar que o Brasil tem 12% da água doce de superfície do mundo”.

Tamanha abundância se reverte em disperdício e impunidade. No Brasil, se “enterra os rios vivos, passa concreto em cima, joga poluição direto no córrego, é barragem de Bacarena que solta rejeito sem ninguém ver e tem muito mais. São mais de 4 mil barragens no Brasil, muitas em risco, sem manutenção, abandonadas e é triste a gente ver o Rio Doce ter sido engolido pela lama e matado bilhões de seres vivos. Agora foi o Rio Paraopeba e os efeitos vão se amplificando. Saber que a lama chegou contaminada de Brumadinho ao Rio São Francisco é desesperador. E a Vale fazendo comercial de que tá tudo bem, mas não tá tudo bem. É só você ir lá e ver o desespero de todo mundo, porque as pessoas dependem da água. Água é direito humano universal. Não é mercadoria”, diz Mundano.